sábado, 12 de dezembro de 2009

Nada

Eu no meu corpo como o tigre no seu bafo.
O mundo leva iguais a jaula e a casa.
Somos a vida que não é,
Fora não ser a morte.
Nem mesmo nada somos:
Estamos no que fomos
À espera do que importe.

Não se pode sair, e entrar já não:
Nada já deu entrada ao só nascido
Que é esse mesmo Nada:
Pelo que Nada não é nada,
Mas é nada
Em Deus que tudo gera.
Eu na minha alma como o bafo no seu tigre.

Vitorino Nemésio

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Devoção Queimada


Ele toma a vela, traz a vela, traz a vela do Rex e da Regina até junto da porteira, puxa-lhe a roupa, aproxima a vela da camisa de nylon, com brilho e em silêncio. Ateia. Ateou? Ateou a camisa?

Penso que esta citação, retirada do conto Marido, de Lídia Jorge, representa a essência que sustenta o tema desenvolvido.
Com o intuito de retratar uma realidade vivida por muitas mulheres, a autora apresenta-nos Lúcia, uma porteira casada, infeliz e submissa.
Essa submissão, porém, não é perante um marido alcoólico (é Lúcia quem gere o dinheiro, o vestuário, a comida e até manda o marido pôr os pregos - e ele calado), mas sim para com uma educação religiosa (comprovada pelas rezas em latim) baseada na concepção de que um matrimónio é um sacramento para todo o sempre.
Não obstante o divórcio ser melhor aceite pela Sociedade (representada pelos inquilinos do prédio em que é porteira), e até a mesma disponibilizar meios para a concretização deste - ainda que de forma pouco sincera, pois o que realmente interessa é dormirem descansados - Lúcia considera tal condescendência uma blasfémia. Assim sendo, é feita prisioneira da sua devoção religiosa.
Pela chama da ironia, acaba por ser queimada com a vela que rezava a Rex e Regina (Jesus Cristo e Mãe de Deus), a qual tinha como propósito a protecção, o triunfo do céu sobre a terra, do espiritual sobre o mundano.
Tudo isto acontece sob o testemunho da lei e das silhuetas dos inquilinos lilases e brancos, que afiguram a intuição e consciência do que acabou por ocorrer.
Também Lúcia esteve diante do seu destino, todavia a inabilidade de percepção do real, abafado pela fé, levou-a à morte.
No entanto, é esse o único desfecho capaz de a libertar daquele lacrimarum valle e de a levar post hoc exilium, ostende.