quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Explicação da Eternidade


devagar, o tempo transforma tudo em tempo.
o ódio transforma-se em tempo, o amor
transforma-se em tempo, a dor transforma-se
em tempo.

os assuntos que julgámos mais profundos,
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo.

por si só, o tempo não é nada.
a idade de nada é nada.
a eternidade não existe.
no entanto, a eternidade existe.

os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos.
os instantes do teu sorriso eram eternos.
os instantes do teu corpo de luz eram eternos.

foste eterna até ao fim.

José Luís Peixoto, in "A Casa, A Escuridão"

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Um amor português em Londres

Ali estava eu em Londres na paragem agarrada ao cachecol, com "unhas e dentes", pois o frio de Inglaterra não é amigável.
Parece uma situação normal, porém o caricato da situação era eu não fazer a mínima ideia do destino.
Na noite anterior, após a ida maravilhosa ao teatro londrino, fui jantar ao restaurante italiano, com pratos especialíssimos a 21 libras e 12 pence cada.
No final do jantar, o empregado deu-me um guardanapo com um nome e um número de telefone dum desconhecido que estava na outra ala da sala.
Confesso-te que me senti a corar, mas simultaneamente lisonjeada, ele era um verdadeiro Deus; cumprimentei-o; acabei o café; paguei; lancei um olhar charmoso (tipicamente feminino) e saí.
No dia seguinte, desfrutando a vista do London Eye, lembrei-me daquela atitude destemida; com uma "pitada" de atrevimento: o guardanapo.
Ao deslumbrar o Thames, com os barcos a irem e virem, fiz uma analogia com a vida e pensei: só se vive uma vez, vou ligar.
Peguei no telefone; marquei o número. Imagina a língua que ouvi:
-Estou, boa tarde.
-Fala português?
- Sim, sou português, quem fala?
-Fala a pessoa à qual deu o número de telefone ontem, no restaurante italiano.
-Ah! Olá chamo-me Manuel. Desculpe-me a frontalidade, mas adoraria beber um chá consigo e mostrar-lhe a cidade. Aceita?
- Bem, dito assim, não resisto. Terá de ser num sítio público. Trafalgar Square?
- Combinado. O autocarro é o 19.
Voltando à paragem, enquanto esperava, fumei um cigarro e gastei uma carteira de fósforos com apenas dois fósforos.
Sentada no autocarro, encontrei o terço oferecido pela avó que me acompanhava nas viagens; rezei baixinho.
No destino, lá estava o Manuel à minha espera. Cumprimentámo-nos à portuguesa.
Seguidamente, bebemos o prometido chá numa esplanada próxima e visitámos os pontos turísticos de Londres.
Depois desse dia memorável - o primeiro de muitos - hoje ainda guardo o poema arrancado do livro oferecido pelo teu pai; o meu amado Manuel.

Santa Submissão


Regina é a única protecção que necessita; a Santa retira-lhe a angústia vespertina do "mau" vinho do marido, e protege-o no caminho de casa.

Entre as cinco e as sete, a vela arde para que a chegada seja antes do jantar:"[...] aos cinco para as cinco acende a vela, põe as mãos pedindo que ele chegue antes do jantar." (Jorge, [1997], 2002:486).

Respeitando o descanso merecido dos inquilinos: o aviador com horas perdidas; o médico que fez serão; os advogados entre a lei e a infracção; o recém-nascido com cólicas; o ancião que foi operado, a porteira canta silenciosamente com imensa doçura visando atingir o coração de Regina.

Contudo, se ele chegar de madrugada Regina torna-a invisível atrás das gaiolas, perdurando o silêncio.

Todavia, aqueles que prezam o silêncio às dez da noite, para dormir e vigilar no silêncio, decidiram "atentar" contra o seu casamento.

Quebrar o santo sacramento do matrimónio nunca fez parte do seu pensamento.

Como é que tal ideia passou pela cabeça daqueles moradores tão distantes do seu universo?

Quem é o advogado do quinto; o médico do segundo; a assistente social do terceiro para lhes tirarem a doçura deste amor?

A ligação entre um homem e uma mulher é um sacramento doce e inquebrável. É-lhes difícil perceber que a vida da mulher sem o homem é negra e solitária?

Não, para Lúcia, uma mulher nunca é um ser completo sem um homem.

Quem é que executaria as tarefas masculinas?

A porteira era submissa emocional e fisicamente porque o seu homem era bom; quando não bebia.

Porém, esse amor era-les desconhecido; assim ela nunca fomentaria esse sentimento anticristão: a separação.

Assim, numa madrugada silenciosa o marido acendeu a vela; ateou-a e Lúcia ficou a crepitar à porta do advogado, pois Regina assim o quis.

Finalmente, a libertação chegou: Rex e Regina acompanharam-na e o seu vale de lágrimas terminou.

Um Algarve Desconhecido


Escrever para criticar destrutivamente o Algarve já é cliché.

Contrariamente, reescrevi as críticas ao meu Algarve com um extremo orgulho algarvio.

Apresentarei um Algarve desconhecido aos "bimbos" que nos vistam no interminável mês de Agosto.

A cidade onde nasci - Olhão - conta a história de gente do campo e do mar unida para expulsar as tropas de Napoleão, protegendo o país e a identidade algarvia.

Após esta expulsão corajosa, esta gente atravessou o Atlântico no humilde caíque Bom Sucesso, levando a boa nova ao Rei D. João VI, exilado no Brasil.

Aquém das praias, injustamente apelidadas de sujas e com um mar de cartão, existe um barrocal desconhecido: a verde, limpa e autêntica Serra de Monchique; as pitorescas aldeias de Querença, Alte e Salir "plantadas" neste Sul emoldurado de cal.

Neste barrocal, ao invés da rechinante sardinha, podemos degustar o chouriço caseiro acompanhado do copito de medronho.

Contrastando a impessoalidade uniforme da hotelaria apresento-vos a indústria que não influencia as estatísticas do emprego sazonal: a conserveira - economia desconhecida pelos veraneantes.

O apanágio de viver na "cauda" da Europa permite-nos desfrutar das praias no Inverno e usufruir de uma liberdade invernosa; tipicamente algarvia.

Também me alegra imenso o emergir da cultura de Inverno:teatro, revista e noites de Ópera.

No contexto cultural, aplaudo e louvo igualmente os algarvios famosos: a escritora Lídia Jorge, o prosador Manuel Teixeira Gomes e o poeta António Aleixo que escreveram, e escrevem, puro português; sem estrangeirismos.

Porém, a nossa qualidade de vida é "abalroada" no Verão quando nacionais e estrangeiros invadem esta região e plastificam-na. Nesse período, se possível migraríamos para o Norte do país.

Se passar férias no Algarve não vos deleita porquê continuar o massacre?

Ó Algarve ladrilhado de bonitos adjectivos, não és, nem nunca serás de plástico ou de cartão.

Nota: Se ao ler este texto continua a criticar o Algarve, aconselho o desembarque na Cuba de Fidel.